quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Réquiem primaveril: Parte II - Os cânticos





— Eu...

Alto, forte, tímido, com seus olhos de desejos inalcançáveis, Lucas o fita. Sorri. E então ela vem, incipiente, impiedosa – a brisa. Varre a festa das lembranças primaveris de Joshua e faz emergir das trevas o primeiro cântico do réquiem. Toques suaves nas teclas envelhecidas do piano, antepassados girando intermitentes no rodamoinho dos deuses, suspiros de amores perdidos, resquícios de ódios antigos. A música se suaviza, como num agouro, surge o céu límpido de Monet em uma tarde de sábado e brotam-se as personagens, cálidas e sorridentes, a passearem na rua de outubro.

— O que és, Joshua Lins?

Fitou-o.

— Sou o pedaço de algo qualquer que ainda ousa amar-te inutilmente. Sou a noite fria das solidões tempestuosas que permanece sempre em sombras. Imaginas que me contento com migalhas? Pois estavas enganado se, por um momento que fosse, pensaste que não seria eu contrário a tal proposta.

— Mas deves entender-te...

Joshua abaixa os olhos, cerra os lábios. Uma lágrima fina lhe escorre pelo rosto pálido e a brisa começa a ferir-lhe as entranhas em um não-se-sabe-o-quê frio e vazio. Lucas se aproxima, toca-lhe a face, fita-o com seus olhos intensamente negros.

— É a única forma.

O outro desvia-se do toque, vira-se de costas – o som do piano torna-se mais ágil, tenso.

— Então não será.

E se afasta, decidido, irritado. Vem-lhe o desespero ao caminhar cada vez para longe e não ouvir a voz do outro a chamá-lo, ao caminhar para o abismo de uma escolha tola, de uma distância que lhe salvaria o orgulho, mas o separaria incondicionalmente do destino há muito traçado.

A cena se desintegra. Lentamente, as cordas do violino se unem ao som puro do piano e se inicia a suavidade triste, a música divina. Os estilhaços fazem Joshua retornar ao quarto escuro, aos livros espalhados, à atmosfera seca e perdida do final de novembro. Silêncio, total e absoluto. As luzes piscam, a cena escurece, o réquiem brota em meio às trevas e clama por Mo

Lucas sorri para Joshua através do vidro embaçado. Sim, sorri, é mesmo possível? Esvai-se com o sorriso o último suspiro, a alma desprende-se, a vida não é mais vida. Joshua prostra-se, cai, não se compreende, não se faz compreender, apenas desaparece em um vendaval imenso e desolador.

O violino desafinado corta a melodia em um ranger que arrepia de horror até a alma mais impiedosa. O piano é socado, martirizado, Mozart grita em dor e agonia, sangra-se como Cristo numa cruz de dezenas de cravos, após centenas e milhares de açoitadas no dorso nu. Grito. Loucura. Dançam os deuses loucos e sorridentes na roda desesperante de despudor festivo. É apenas loucura - rangidos, gritos, Mor

Lucas sorri. É mesmo possível? Joshua não sabe, ele nunca sabe, ele sempre faz as escolhas erradas, sempre opta pelo ranger e a dor.Silêncio. Vazio. Mort

Que voz é essa que invade minha crônica? Que crônica é essa que invade a voz louca do meu pesar? Que palavra é essa que se profetiza desde o princípio e nasce no fim?

Joshua tenta falar, mas as palavras não lhe tocam os lábios, o Joshua daquela tarde é incapaz de proferi-las. Lenta, a palavra surge num murmúrio sufocado, triste, que vaga juntamente com o silêncio agourento do quarto escuro, quando novembro já se foi e Lucas não passa de lembranças.

A palavra surge, materializa-se, grita calada.

Morte.

[continua na próxima encarnação]

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Réquiem primaveril: Parte I - Joshua Lins



Acordou de sonhos vítreos e artificiais, nutrido por um novo e pesaroso sopro. Que monstro era aquele? Como poderia tão brutalmente arrancar-lhe os mais belos e harmoniosos sentimentos? Sorriu, confuso, enquanto uma lágrima pálida lhe rasgava a face – fria, entrecortada pela meia-luz da porta entreaberta.

A voz de Caetano sussurrava, melodiosa, seus resquícios de paixões antigas:

Eu quero a sorte de um amor tranqüilo
Com sabor de fruta mordida
Nós, na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva

O silêncio tornara-se agourento. Perdia-se através das páginas amarelas dos livros abertos sobre a escrivaninha e vagava pela branquidão morna da luz do abajur. Continuava percorrendo as desilusões até as cartas amassadas na lixeira e as fotos recém rasgadas, espalhadas pelo chão frio. Toda a dignidade havia escorrido pelo lamaçal da briga, juntamente com as lembranças de um passado cada vez mais distante.

Joshua Lins era um homem de poucas palavras, muitos pensamentos. Caminhava em meio à multidão sem distinguir-se de qualquer mortal, apenas revivendo momentos perdidos. Trabalhava numa empresa de publicidade, mediocremente, submetendo-se aos caprichos ridículos de um homem gordo e asqueroso. Recebia metade do que lhe era devido, comia pouco, não possuía vida social ou amorosa. Vestia sempre a mesma calça jeans tosca, os mesmos sapatos velhos, as mesmas camisas feias, as mesmas esperanças ridículas, o mesmo olhar perdido, e seguia incessantemente a rotina de subempregado de classe baixa.

Aos sábados, vestia uma roupinha de garoto comportado, penteava uniformemente os cabelos negros e caminhava até a praça dos namorados risonhos. Sem sorrir, sem falar, sem cumprimentar, comia um cachorro-quente com mostarda e bebia uma coca-cola barata, lambia um sorvetinho ralo e retrancava-se na sua casa à beira da Avenida Brasil. Aos domingos, freqüentava regularmente a missa e masturbava-se antes de dormir, recuperando em memórias vagas os desejos secretos.

Tudo correria perfeitamente bem, deteriorando-se em intervalos regulares, não fosse um certo inconveniente que sempre destrói até as mais intermitentes rotinas: o novembro. Sim, o mês dos amores contrariados e dos nascimentos divinos, o mês das flores pálidas caindo em orvalhadas suaves dos galhos finos e da lua imensamente cheia, vermelha, atraindo os antepassados de mundos distantes. Novembro, como era inevitável, romperia qualquer fato previsto e faria de sua vida a mais louca e inebriante das aventuras.

No entanto, esse mês ainda tarda um pouco a chegar. Partamos do início, quando as abelhas ainda voavam naquele céu ensolarado e os moleques empinavam pipas no alto do morro. O início: Lucas.

Encontrou-o numa tarde de sábado em que rompera a rotina e fora a uma festa de aniversário. Os copinhos de refrigerante eram plásticos e os sorrisos idem, os docinhos gordurosos e o bolo insalubre, Joshua conversava monotonamente com um de seus colegas da empresa quando o viu.

Era óbvio que já o conhecia, mas não de qualquer lugar que lhes fosse comum a esta vida - talvez de outros séculos, quem sabe. Talvez de eras tão remotas e épocas tão distantes ao ponto de ser natural que as almas gastas e enferrujadas são se reconhecessem. Não, a compreensão foi imediata. Não há séculos ou milênios, deuses ou mundos que separem duas pessoas predestinadas a viverem eternamente entrelaçadas, no mais louco e divinal paradoxo entre amor e ódio.

Fitaram-se. Joshua sorriu. Encabulado, envergonhado, com a face levemente ruborizada, estendeu-lhe a mão. Entre um pensamento difuso e outra confusão qualquer, cumprimentou-o jovialmente. Movimentou levemente os lábios, deixando escapulir uma voz distante que não era a sua e, quase em um murmúrio, disse:

[continua em outubro]

Silencioso vôo para a eternidade



A criatura emergiu das águas, fraca, semimorta. Julgá-la-iam um afogado, se fossem outras crianças que a encontrassem, mas como os mares brasileiros são mais negros do que os caribenhos, como nossas aldeias são mais necessitadas de esperança e nossos sonhos ainda mais estreitos, a quarta-feira não ousou matar quem quer que fosse. Portanto, a desconhecida viveria.

Arrastaram o volume até a areia áspera, o corpo era pequeno e frágil, coberto de alga e sujeira. Observaram demoradamente a face feminina e angelical, os braços delicados, a aura triste de mares distantes. Talvez, dilacerados em suas esperanças vazias, apenas pensando em necessidades urgentes e desejos carnais, julgá-la-iam chamar-se Sarah, mas ainda que fossem nutridos de uma inteligência limitada, aqueles eram homens respeitosos e cristãos, que jamais observavam apenas as ancas maduras e os seios fartos. É Ju, concluíram. Porque Ju é simples e humilde, não sacode suas belezas como uma mulher de todos, não deixa a futilidade do corpo violar a inocência da carne. Ju é Ju. Fato simples, breve e puro como o aroma das amêndoas nas tardes douradas de domingo.

Creio, no entanto, que a pureza da alma não é um privilégio para todos. Tanta simplicidade irritou os mais tradicionais: como ousava uma mulher medíocre, fraca, um ser subumano sobreviver às águas negras e gélidas daquele oceano de afogados? Onde estaria o sentido de viver, de lutar, de se superiorizar, se uma ‘quase-mortinha de merda’ insistia em humilhar aqueles que são as pilastras sobre as quais se ergueu o mundo? Como uma mulher fraca e ínfima atravessara oceanos e enredara-se pelos mundos desconhecidos das criaturas marinhas e permanecera viva, se nem mesmo o esplendoroso Estevão conseguira realizar tal façanha? Definitivamente, não era mais possível que permanecessem incógnitos perante tal afronta. Encolerizados, espancaram-na com seus ódios e invejas, rasgando-lhe a carne e ferindo-lhe as entranhas. Apossaram-se de seu corpo e mostraram o quanto era inferior em sua pretensão feminina.

Silenciosa, submissa, a mulher apenas mascarava seu poder onipotente, capaz de fazer os girassóis brotarem nos desertos mais inóspitos. Já haviam feito aquilo há dois mil anos e repetiram o feito por milênios em um livro de línguas mortas, mas com Ju era diferente: ainda mais sutil, ainda mais belo, ainda mais triste.

Por fim, realizados em seu sadismo, com a alma límpida e as vergonhas expurgadas, carregaram o corpo inerte até o abismo, onde as águas espumantes espancavam as pedras, e a morte perambulava, sonâmbula e entediada, com seu vestido de pontas esfarrapadas, úmidas e salgadas. Lançados sobre o abismo, os últimos suspiros de agosto compartilharam com frágil sutileza o silencioso vôo de Ju para a eternidade.

Seus olhos, tão azuis, ainda me atormentam em noites negras. Como não pude evitar que a fizessem sofrer, quando eu mesmo seria capaz de atirar-me num abismo em troca de sua vida? E deixaria que me fizessem de Cristo, arrancando-me os pedaços de vida aos poucos, para que minha amada e doce Ju não perecesse nos braços da morte. Entregar-me-ia sorridente ao covil das raposas e rasgaria meus próprios pulsos com os dentes, se ao final de tudo isso os seus doces olhos azuis ainda estivessem vivos em algum lugar para me consolar – mesmo que por um único dilacerante segundo. E faria isso milhões de vezes, eternamente, em um inferno dantesco, já que por mim ela o faria em dobro, com uma única diferença: sem esperar nem mesmo um olhar em troca de tal gesto.

Não, não posso salvá-la! Como não pude e jamais poderei, como não evitei que acontecesse aos outros e não evitarei que aconteça a mim. Não posso salvá-los, e no fundo não quero. É essa a sina de quem narra. Afinal, um texto é como o Atlântico: imenso e poderoso, mas que desaparece se um único detalhe destrói o equilíbrio. Viverei, sim, até quando for possível, amando-os incondicionalmente, mas matando-os quando o for necessário (e amar também não é matar aos poucos?). E se o texto é como o mar, o narrador é como um deus. E assim sou quando escrevo: Mato, morro e ressuscito quando quero, neste mundo que é meu, onde governo onipresente – eu, Deus; personagens, humanos; o mar, uma imensa fonte de poesia.
Ju, eternidade.

As flores



A orquídea ainda estava lá, silenciosa, branca e submissa. Era possível ouvir o vazio dos amores contrariados que insistia em ressoar sobre suas pétalas. A calidez da tarde sumia aos poucos, cedendo lugar a um rubro espetáculo de vida: o pôr-do-sol da cidade. Tudo tão breve, triste, dissolvendo-se belamente ao contato com o mundo dos homens. Não havia qualquer explicação lógica: era o amor. Simples, puro e solitário.

A moça, embora renascida nas palavras e ressuscitada no amor, insistia covardemente em arrancar o sopro das rosas de julho, excluir-se por completo do convívio com os homens, mergulhar na imensidão árdua da desilusão. Eu não a culparia, afinal, nem sempre há como compreender as faces absurdas desse sentimento louco ao qual ousamos, humildemente, nos submeter.

Mas por que amar é tão complicado? Simplesmente, porque o amor é uma troca de vidas, um eterno e constante dividir, um contato alma a alma. Ele ricocheteia nas pilastras duras do desentendimento e da solidão e rompe, dilacerante, as orquídeas dos corações mais amargos – convertendo-as em belas, suaves e rubras rosas.

Amar não é simples, porque viver é o maior mistério da humanidade. O amor nos transforma em seres mais fracos, susceptíveis a erros, e isso faz com que queiramos fugir desesperadamente de suas artimanhas. Quando amamos, esquecemos o mundo lógico e racional, esquecemos o trabalho, o dia-a-dia nefasto que só presta para estragar a vida, só pensamos nas rosas. E quando descobrimos que as rosas virarão orquídeas a qualquer momento, culpamos o amor. O problema não é amar, mas saber como fazê-lo. O sofrimento do homem não está na paixão, mas em sua imaturidade perante a divinal e incompreensível face desse sentimento.

Meu recado é para você, moça das flores: a renascida. Não deixe que o mundo seque suas esperanças, tampouco que o cansaço intermitente do cotidiano faça com que as pétalas de suas rosas se esvaiam pela brisa de julho. Não deixe que o amor seja vencido pelos sentimentos profanos que corrompem a alma. Pense na sua vida. Pense nas suas rosas.

E ao leitor, que talvez caia nas artimanhas da desilusão, eis o conselho de um simplório poeta que há muito não conhece o amor: As rosas estão aí, vermelhas, amarelas, brancas, em um espetáculo de pureza e vida. E a orquídea está lá, branca, seca, murcha, largada em um canto qualquer, fria e quase-morta. A escolha é sua: Rosa ou orquídea?

A velha




O ônibus sacolejava naquele silêncio mefítico de inumanidade. A velha seria como todas as outras, não fosse por uma atmosfera sobrenatural de solidão disfarçada. Entrou pela porta da frente, com seu vestido leve e vermelho, os cabelos artificiais e o rosto coberto de maquilagem. Um perfume doce se apossou de minhas narinas. Instantaneamente, concluí que ela era viúva e se chamava Josefa.

Ah... o ar da viuvice e da solidão! Não há como disfarçá-lo. A gente sempre capta a atmosfera perdida de coisas velhas, a alma ferida de um amor que um dia se esfarelou como um pedaço de pão mofado.

Não havia lugar para Josefa no banco da frente, onde um garotinho brincava distraído com seu carrinho vermelho. As vozes das pessoas começavam a me sufocar aos poucos, sibilos repletos de gelidez e preconceito. Tudo o que me prendia a esse mundo de poetas deslocados era a doce cena da velha que mudamente clamava por um assento.

— Garotinho, disse por fim, cansada de tudo e ainda esperançosa por um futuro qualquer. Deixe eu me sentar aí. Você pode sentar no meu colo se quiser. Desço no ponto da igreja.

Sentou-se, ainda mais velha e cansada. Mas, agora, uma brisa fina de dezembro balançava seus cabelos leves e descoloridos. Um sorriso de prazer esquecido iluminou-lhe a face e percebi que também não tinha netos. Uma coisa estranha começava a me corroer por dentro.

Vi uma jovem que corria entre abraços com seu namoradinho pelos canaviais férteis de uma fazenda. Tudo tão simples e puro! Mas ela seria punida. A brutalidade colocaria aquela inflexível aura de rigidez na sua face. Casar-se-ia com outro, por interesses familiares, teria filhos desvirtuados que a fariam sofrer por longos anos sem dar-lhe neto algum. Por fim, todos morreriam ou partiriam e ela ficaria só, na sua velha casa de madeira, na encosta de um morro qualquer, até que um deus fizesse a bondade de cobrar-lhe o sopro emprestado por Eva.

Agora, ela estava ali brincando, com um garotinho no colo. Não nego que senti um vazio no peito quando ela desceu, dois pontos antes da igreja, para poder caminhar um pouco – quem sabe, encontrar alguém com quem conversar. O silêncio era ainda mais assassino agora. Não deixei que vissem a lágrima quente que me tocou o rosto.

Dizem que sou sensitivo. Até acredito. Minhas crenças permitem compreender tal presente cruel com o qual os deuses servem a humanidade. Mas, acredito que não seja isso que me fez chorar. Penso que todos aqueles que têm sua hora marcada nas linhas da Tecelã sentem-se vazios diante da velhice. O conforto de uma vida plena que não sabemos se existe.

Amêndoas de maio

Porque os aromas são mais doces neste maio de alvo véu, falarei sobre o amor. Não o amor voluptuoso de minhas noites ciganas, tampouco a paixão ardente que transpira em meus contos. Não falarei do amor de homem, mas daquele que suavemente clama no fundo de nossas almas eternamente incompletas: o de filho.

Filho, sim, com muito orgulho, da dona Maria das Graças, tão doce, carinhosa e viva. Mas, acima de tudo, filho desta mãe enérgica, multifacetada, confusa, amorosa: A Língua Portuguesa. Quem mais poderia tão docemente amar sem exclusão? E que outro coração poderia ser tão nobre, puro, precioso, a nos deliciar com seus encantos tão sutis?

Sim... Axé, mainha! Abanheém. Jacamim eterno. Que face possui? Todas. Únicas. Vivas. Como pode acolher tanta gente, tanto filho, tanto amor em um único ventre? É ventre fértil, acolhedor, gigantesco. Oh! Como a amo! Dilacero-me em vis impropérios de falante inculto. Pobre de mim, filho de uma mãe tão graciosa. Logo eu, tão simplório, curumim, moleque, guri, pirralho, bambino, piá, virgenzinho das letras.

O caçula? Talvez por isso o mais querido, o seleto, o mais amado? Não, não! A Grande Mãe não exclui, não dá mimos excessivos, ama a todos com igualdade. Por mais puristas que sejam uns filhos, mais 'simpres sejam ozotro', todo mundo divide o mesmo belo e incomensurável amor. Todos – que lindo! - somos irmãos que compartilharam o mesmo ventre, o mesmo seio, e se ramificaram nessa imensidão bela que tornou a Grande Mãe tão colorida, heterogênea.

E é por isso que, neste “mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus”*, faço esta pequena homenagem às mães, às marias, às terezinhas, às janaynas, às naturezas, ao universo nunca escasso do amor.

Amor, love, amour, liebe, amore. Com estrangeirismos sim, por que não? O importante é amar. E por isso jamais deixarei de mostrar o quanto a amo, como sei que jamais minha mãe desapontará seus filhos - todos grandiosamente diferentes, mas que no fim se encontram entrelaçados por uma mesma face: a de humanos, tão imperfeitamente perfeitos quanto a mãe.

E como um último e carinhoso gesto, uma humilde declaração de amor, retorno ao ventre materno. Sinto novamente o calor do útero alimentando-me as esperanças e o mundo imenso e desconhecido do futuro aguardando-me com sua tão monstruosa face.

Permito-me ao singelo gesto de permanecer na vaguidão do amor e aspirar o ar doce de maios antigos. Ao Lácio, ventre, útero! À mãe de tudo aquilo que fui, sou e serei! À semente que tão belamente frutificou, cresceu e nunca morrerá nessas terras de almas eternamente esperançosas! Sim, a você, nobre mãe, que tão belamente inebria este ignaro poeta. A você: Amor amore compensatur.

(*) Citação: Clarice Lispector

Palavras


— Foi uma história engraçada, a do seu pai. – Ele disse, distraído.
Sorri.
— Dava até notícia de jornal.
Ele sorriu.
— Jornal The Family.
Desconcentrei-me de meus pensamentos abstratos por uns instantes. Tudo era quente, o ar denso e perdido. Mas é claro..., pensei. Um jornal! E naquela tarde nasceu a minha primeira crônica jornalística, divulgada no mês seguinte para a família Juliani – em troca de uma contribuição simbólica de cinqüenta centavos para os gastos administrativos.

Publicamos o jornal por três anos ininterruptos, todo primeiro domingo de cada mês, até que um dia veio o marasmo e o afastamento, a desintegração total de um sonho infantil, e tudo ficou perdido em algum lugar de nossas vidas. Tudo... exceto a esperança. Éramos jovens sonhadores. Ele, principalmente.

Marco sonhava alto, fazia planos grandiosos. Foi ele, há muitos anos, numa áspera manhã de sábado, que disse o tal conselho que me salvou do destino dos desesperançados: “Você tem talento, Juan; muito talento! Não deixe as pessoas te ofenderem, não ligue para a indiferença e o preconceito... vença tudo isso e dedique-se a única coisa que realmente importa: a felicidade.” E então ele me pediu pra escrever e nunca parar. Nunca desistir. Segundo ele, esse era o meu destino: encantar as pessoas com as palavras.

E as palavras grudaram em mim, como um vírus contagioso que eu era obrigado a transmitir. Um vírus que não mata, apenas salva. Uma luz que brota no final de todos os túneis e reina, mágica, espalhando-se nas almas das pessoas e fazendo com que suas esperanças não morram, com que suas vidas tenham algum sentido. Foram as palavras que me salvaram da solidão, que serviram de ponte entre aquele jovenzinho tímido e o mundo real. Escrever me tornou mais esperançoso e, acima de tudo, capaz de lutar pelos meus sonhos.

Hoje, Marco Antonio Juliani não está mais aqui. Mas ele não morreu, porque nunca deixou de sonhar. Ele não permitiu que as pessoas o tratassem com indiferença, não deixou que o mundo o humilhasse: sua esperança era uma estrela grandiosa, brilhante e sempre viva, que tocava cada mortal e enchia até a alma mais atormentada com uma alegria límpida.

Esse mundo não é mais dele. Sua estrela foi brilhar em outras terras, em outros mundos. Aqui ficamos nós, com saudade, perdidos em nossas esperanças que aos poucos são sufocadas pela indiferença e o egoísmo. Alguns até aguardam, apegando-se nas suas ilusões cômodas, pelo momento em que se unirão ao meu primo Marco e tantos outros, em uma terra onde as esperanças não morrem nunca.

Uma terra onde o contato suave das águas do mar molha nossos pés e a paz das gaivotas ilumina o azul eterno das tardes de domingo. A terra onde todos os homens são iguais, caminhando pela mesma verde grama e se alimentando do mesmo divino amor que um dia fez as trevas se dissiparem e o mundo nascer na imensidão estrelada do Universo.

Flocos de poesia



“Os ventos frios do Sul!... as massas frias!...(Amada neve!)[...] Se pudesse chegar pelos ares , sem maltratar as plantas, sem molestar ninguém... Se viesse como um jardim branco desfolhar-se pela paisagem! Se fosse apenas uma festa cintilante... um brinquedo dos ares... uma alegria da água desenhando-se e apagando-se em nossas mãos! – um verso do inverno, caindo do céu, letra por letra!...”¹

Há maneira mais sublime de se iniciar uma crônica, na semana em que comemoramos o Dia da Poesia, do que com a inigualável prosa de Cecília Meireles? Sim, meus calorosos leitores, essa semana os amores se tornam mais belos, os cânticos mais suaves, os pássaros mais cantarolantes! Essa semana, a magia da poesia embala o ar doce das manhãs, acompanhada pelos flocos brancos e gélidos de nossa amiga Cecília.

Entusiasmados pela atmosfera da literatura é que percorremos os caminhos errantes pelas veredas de um mundo onde as palavras são vivas. Recordamos A Paixão, que segundo GH, é misteriosamente crua e conectada com o mundo Divino. Ouvimos alguma poesia, musicalizada em versos simples e tocantes pela voz de um mestre. Ficamos na mágica solidão do silêncio por cem anos, apenas ouvindo estrelas e a voz pacificadora das amendoeiras.

Por uma única semana, os céus não são céus e a terra não é terra, porque Cristo caminha conosco - até mesmo pelos Dias de Ira. Os mortos deixam seu mundo de silêncio por poucos instantes, ansiosos pelo contato caloroso com os vivos, transmitindo saberes e contando histórias, numa sala onde as vidas se unificam e mundo é todo paz. O fogo do amor arde, invisível, e fere sem sentirmos, indistinto às línguas humanas e angelicais... E a alma vibra, atormentada.

Viva Pasárgada! Viva a loucura, a beleza e o amor! Um grito de felicidade pela comoção das vidas, de lirismo pelas belas moças da gare. Um suspiro triste àqueles que amam todos e não amam ninguém (e no fim se casam com desconhecidos), ao jazigo aquático de João Gostoso...
Grite! Pule! Comemore! Enlouqueça! Ame! Sonhe! Viva! A vida é uma imensa poesia, os homens são versos e os momentos estrofes. Deixemos a beleza invadir nossas almas e a paixão enlouquecer nossos sentidos, vivamos intensa e magicamente, mesmo que por um único dia.

Feche os olhos! Sinta o floco de neve tocando seus ombros. No fim você percebe, espantosamente, que ao invés de sentir frio, o seu corpo se aquece – e o calor abrasador lhe inebria cada vez mais, até apossar-se mansamente de toda a sua alma. Então, ao explodir-se numa unificação de pura poesia, tudo que você ouve é o sussurro suave dos antepassados, distante, belo, relembrando que o mundo é apenas um breve momento: o toque de um floco na imensidão alva da alma humana.

Plumas de ninhos em teus seios; urnas
De rubras flores em teu ventre; flores
Por todo corpo teu, terso das dores
De primaveras loucas e noturnas.”²

1 – Cecília Meireles – Amada Neve/ 2 – Vinicius de Moraes – Soneto do Breve Momento

Putas tristes e leitores desamparados


Sábado passado, pus-me a vagar como um fantasma sem rumo por entre as prateleiras recheadas da livraria Cordis. Por lá fiquei durante longos minutos, viajando em terras mágicas e provavelmente inóspitas. No entanto, nem tudo são flores nessa jornada louca de inebriação literária.

Cada vez que entro numa livraria, seja aqui nessa cidadezinha de poetas esquecidos ou nas barulhentas metrópoles do nosso país, me surpreendo com a ausência de um nome que revolucionou a literatura mundial, o criador da mais bela das perfeições literárias e ganhador do Prêmio Nobel por sua incomparável obra.

È de se lamentar profundamente que os leitores colatinenses, como tantos outros espalhados por esse país de analfabetos, não saibam o que é caminhar pelas ruas secas e quentes de Macondo. Não conheçam o Coronel Aureliano, aquele homem fantástico, que perdeu trinta e duas revoluções armadas, teve dezessete filhos mortos numa única noite e sobreviveu a um envenenamento - para morrer embaixo de uma árvore, velho e esclerosado, devorado pela decadência e o esquecimento.

Não existe quem não se emocione com a história do afogado Estevão, ou se divirta com os episódios incríveis que levaram a família Buéndia à perdição. Que choque foi presenciar aquele bebê sendo devorado por formigas! Que paixão sublime aquela que arrebatou a marquesinha dos cabelos de vinte metros! Que amor puro o do velho pela virgem que deveria ser prostituta! É esse o universo de García Márquez, o diamante raro da literatura colombiana. Tão raro que sumiu das prateleiras de nossas livrarias e até mesmo bibliotecas.

Enquanto autores contemporâneos, como Dan Brown, Nora Roberts e os nacionais Paulo Coelho e Bruna Surfistinha, se popularizam cada vez mais e multiplicam a venda de seus exemplares aos milhões - mais pela polêmica de seus temas do que pela qualidade das obras – nomes imortais como o de García Márquez são assassinados brutalmente pelo esquecimento e a indiferença, tanto das editoras e livrarias, quanto dos leitores.

Àqueles que desejarem conhecer o Oásis Perdido de Márquez, sugiro que visitem a Biblioteca Municipal, onde encontrarão títulos maravilhosos como “Cândida Erêndira”, “Do amor e outros demônios” e “O enterro do diabo”. Na livraria Cordis, pude encontrar “Memórias de minhas putas tristes”. No entanto, o único local onde obtive acesso a sua obra prima, “Cem anos de solidão”, foi na Biblioteca da FUNCAB. Já “Amor nos tempos do cólera”, recém adaptado para o cinema, não encontrei em canto algum de Colatina.

Humildemente, peço aos proprietários das livrarias colatinenses que olhem com mais amor para os livros de Gabo – o recado é o mesmo para os leitores. A obra de Márquez é saborosa e rica, repleta de um magnetismo especial. Não lê-la é perder uma oportunidade rara de navegar por um universo onde a magia é inebriante e inesgotável.