sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Réquiem primaveril: Parte I - Joshua Lins



Acordou de sonhos vítreos e artificiais, nutrido por um novo e pesaroso sopro. Que monstro era aquele? Como poderia tão brutalmente arrancar-lhe os mais belos e harmoniosos sentimentos? Sorriu, confuso, enquanto uma lágrima pálida lhe rasgava a face – fria, entrecortada pela meia-luz da porta entreaberta.

A voz de Caetano sussurrava, melodiosa, seus resquícios de paixões antigas:

Eu quero a sorte de um amor tranqüilo
Com sabor de fruta mordida
Nós, na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva

O silêncio tornara-se agourento. Perdia-se através das páginas amarelas dos livros abertos sobre a escrivaninha e vagava pela branquidão morna da luz do abajur. Continuava percorrendo as desilusões até as cartas amassadas na lixeira e as fotos recém rasgadas, espalhadas pelo chão frio. Toda a dignidade havia escorrido pelo lamaçal da briga, juntamente com as lembranças de um passado cada vez mais distante.

Joshua Lins era um homem de poucas palavras, muitos pensamentos. Caminhava em meio à multidão sem distinguir-se de qualquer mortal, apenas revivendo momentos perdidos. Trabalhava numa empresa de publicidade, mediocremente, submetendo-se aos caprichos ridículos de um homem gordo e asqueroso. Recebia metade do que lhe era devido, comia pouco, não possuía vida social ou amorosa. Vestia sempre a mesma calça jeans tosca, os mesmos sapatos velhos, as mesmas camisas feias, as mesmas esperanças ridículas, o mesmo olhar perdido, e seguia incessantemente a rotina de subempregado de classe baixa.

Aos sábados, vestia uma roupinha de garoto comportado, penteava uniformemente os cabelos negros e caminhava até a praça dos namorados risonhos. Sem sorrir, sem falar, sem cumprimentar, comia um cachorro-quente com mostarda e bebia uma coca-cola barata, lambia um sorvetinho ralo e retrancava-se na sua casa à beira da Avenida Brasil. Aos domingos, freqüentava regularmente a missa e masturbava-se antes de dormir, recuperando em memórias vagas os desejos secretos.

Tudo correria perfeitamente bem, deteriorando-se em intervalos regulares, não fosse um certo inconveniente que sempre destrói até as mais intermitentes rotinas: o novembro. Sim, o mês dos amores contrariados e dos nascimentos divinos, o mês das flores pálidas caindo em orvalhadas suaves dos galhos finos e da lua imensamente cheia, vermelha, atraindo os antepassados de mundos distantes. Novembro, como era inevitável, romperia qualquer fato previsto e faria de sua vida a mais louca e inebriante das aventuras.

No entanto, esse mês ainda tarda um pouco a chegar. Partamos do início, quando as abelhas ainda voavam naquele céu ensolarado e os moleques empinavam pipas no alto do morro. O início: Lucas.

Encontrou-o numa tarde de sábado em que rompera a rotina e fora a uma festa de aniversário. Os copinhos de refrigerante eram plásticos e os sorrisos idem, os docinhos gordurosos e o bolo insalubre, Joshua conversava monotonamente com um de seus colegas da empresa quando o viu.

Era óbvio que já o conhecia, mas não de qualquer lugar que lhes fosse comum a esta vida - talvez de outros séculos, quem sabe. Talvez de eras tão remotas e épocas tão distantes ao ponto de ser natural que as almas gastas e enferrujadas são se reconhecessem. Não, a compreensão foi imediata. Não há séculos ou milênios, deuses ou mundos que separem duas pessoas predestinadas a viverem eternamente entrelaçadas, no mais louco e divinal paradoxo entre amor e ódio.

Fitaram-se. Joshua sorriu. Encabulado, envergonhado, com a face levemente ruborizada, estendeu-lhe a mão. Entre um pensamento difuso e outra confusão qualquer, cumprimentou-o jovialmente. Movimentou levemente os lábios, deixando escapulir uma voz distante que não era a sua e, quase em um murmúrio, disse:

[continua em outubro]

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