sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Silencioso vôo para a eternidade



A criatura emergiu das águas, fraca, semimorta. Julgá-la-iam um afogado, se fossem outras crianças que a encontrassem, mas como os mares brasileiros são mais negros do que os caribenhos, como nossas aldeias são mais necessitadas de esperança e nossos sonhos ainda mais estreitos, a quarta-feira não ousou matar quem quer que fosse. Portanto, a desconhecida viveria.

Arrastaram o volume até a areia áspera, o corpo era pequeno e frágil, coberto de alga e sujeira. Observaram demoradamente a face feminina e angelical, os braços delicados, a aura triste de mares distantes. Talvez, dilacerados em suas esperanças vazias, apenas pensando em necessidades urgentes e desejos carnais, julgá-la-iam chamar-se Sarah, mas ainda que fossem nutridos de uma inteligência limitada, aqueles eram homens respeitosos e cristãos, que jamais observavam apenas as ancas maduras e os seios fartos. É Ju, concluíram. Porque Ju é simples e humilde, não sacode suas belezas como uma mulher de todos, não deixa a futilidade do corpo violar a inocência da carne. Ju é Ju. Fato simples, breve e puro como o aroma das amêndoas nas tardes douradas de domingo.

Creio, no entanto, que a pureza da alma não é um privilégio para todos. Tanta simplicidade irritou os mais tradicionais: como ousava uma mulher medíocre, fraca, um ser subumano sobreviver às águas negras e gélidas daquele oceano de afogados? Onde estaria o sentido de viver, de lutar, de se superiorizar, se uma ‘quase-mortinha de merda’ insistia em humilhar aqueles que são as pilastras sobre as quais se ergueu o mundo? Como uma mulher fraca e ínfima atravessara oceanos e enredara-se pelos mundos desconhecidos das criaturas marinhas e permanecera viva, se nem mesmo o esplendoroso Estevão conseguira realizar tal façanha? Definitivamente, não era mais possível que permanecessem incógnitos perante tal afronta. Encolerizados, espancaram-na com seus ódios e invejas, rasgando-lhe a carne e ferindo-lhe as entranhas. Apossaram-se de seu corpo e mostraram o quanto era inferior em sua pretensão feminina.

Silenciosa, submissa, a mulher apenas mascarava seu poder onipotente, capaz de fazer os girassóis brotarem nos desertos mais inóspitos. Já haviam feito aquilo há dois mil anos e repetiram o feito por milênios em um livro de línguas mortas, mas com Ju era diferente: ainda mais sutil, ainda mais belo, ainda mais triste.

Por fim, realizados em seu sadismo, com a alma límpida e as vergonhas expurgadas, carregaram o corpo inerte até o abismo, onde as águas espumantes espancavam as pedras, e a morte perambulava, sonâmbula e entediada, com seu vestido de pontas esfarrapadas, úmidas e salgadas. Lançados sobre o abismo, os últimos suspiros de agosto compartilharam com frágil sutileza o silencioso vôo de Ju para a eternidade.

Seus olhos, tão azuis, ainda me atormentam em noites negras. Como não pude evitar que a fizessem sofrer, quando eu mesmo seria capaz de atirar-me num abismo em troca de sua vida? E deixaria que me fizessem de Cristo, arrancando-me os pedaços de vida aos poucos, para que minha amada e doce Ju não perecesse nos braços da morte. Entregar-me-ia sorridente ao covil das raposas e rasgaria meus próprios pulsos com os dentes, se ao final de tudo isso os seus doces olhos azuis ainda estivessem vivos em algum lugar para me consolar – mesmo que por um único dilacerante segundo. E faria isso milhões de vezes, eternamente, em um inferno dantesco, já que por mim ela o faria em dobro, com uma única diferença: sem esperar nem mesmo um olhar em troca de tal gesto.

Não, não posso salvá-la! Como não pude e jamais poderei, como não evitei que acontecesse aos outros e não evitarei que aconteça a mim. Não posso salvá-los, e no fundo não quero. É essa a sina de quem narra. Afinal, um texto é como o Atlântico: imenso e poderoso, mas que desaparece se um único detalhe destrói o equilíbrio. Viverei, sim, até quando for possível, amando-os incondicionalmente, mas matando-os quando o for necessário (e amar também não é matar aos poucos?). E se o texto é como o mar, o narrador é como um deus. E assim sou quando escrevo: Mato, morro e ressuscito quando quero, neste mundo que é meu, onde governo onipresente – eu, Deus; personagens, humanos; o mar, uma imensa fonte de poesia.
Ju, eternidade.

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