domingo, 16 de novembro de 2008

Amor, liberdade, ódio e silêncio

“A poesia deste momento inunda minha vida inteira” (Carlos Drummond de Andrade)




Resolvi contar uma história bela, na qual o amor jorrasse em sua imensidão vaga e inebriante, mas tudo o que consegui foi papel amontoado e lágrima falsa, uma cena melancólica rasgada por Mozart em um sofrimento frio. Levemente desapontado, resolvi escrever sobre pássaros que voam numa manhã de sol.
Meus pássaros, coloridos, vagavam sem destino. Cruzavam montanhas verdes cobertas de neve, viajavam em bandos alegres por campos floridos e crepúsculos virgens. A liberdade cobria-lhes as penas suaves e o futuro iminente e desconhecido enchia-lhes as almas com uma esperança clara. Falar sobre pássaros, porém, é viver a liberdade – e a liberdade não me frutificou com versos, não me inspirou sonetos. Fracassei, portanto, nessa segunda tentativa de recriar o mundo com palavras.
Como à noite os amores tornam-se cegos e os pássaros abrigam-se em seus aconchegantes ninhos, resolvi falar sobre noites. Sentir o hálito suave da lua engolfando nossos corpos imaturos é como ser devorado por um fogo gélido, como consumir-se em chamas luxuriosas e assassinas. Amar a noite é amar o infinito, é amar um pedaço negro daquilo que nos torna humanos e divinos. Pesaroso, resolvi que escrever sobre a noite me tornaria escravo de sentimentos inalcançáveis. Fracassei.
E com os pés mergulhados numa latrina imunda, o coração dilacerado em dor e a alma imersa no total abismo da mediocridade, resolvi escrever sobre o ódio. Cortei-me os pulsos e mergulhei a ponta da pena no sangue quente, inundando o papel com asperezas e lamentos. Louco, ensandecido, prestes a roubar-me a própria vida, descobri que sobre o ódio eu também era incapaz de criar poesias, e que minha caneta oca e infértil não conseguia odiar nada que não fosse o próprio ódio. Odiar o ódio. Amar o amor. Libertar a liberdade. Existiria poesia nesses absurdos?
Calei-me. Joguei no lixo a pena e o papel, deixei que minha alma repousasse no cantinho daquele quarto escuro e permaneci no total e absoluto silêncio, onde nenhum lirismo fosse bem vindo e meu fracasso não se tornasse visível ao olhar crítico daqueles que me cercam. Foi nesse momento, no entanto, que a simplicidade da inspiração invadiu-me espantosamente o coração pungente.
A verdade viera, simples e cristalina, como a delicada lágrima que me tocara a face: ali estava a poesia! Como não a pude ver?! Sim, eu viajara por dimensões de amores inebriantes, entregara minha alma a uma liberdade infinita, odiara o mundo e a mim, para enfim descobrir que a poesia está no mais simples e puro de todos os momentos humanos: o silêncio.
Não eram necessárias as palavras, porque o silêncio por si só é uma corrente viva e eterna de sabedoria que jorra no coração dos aflitos e dos bem-aventurados. O amor está no silêncio, a liberdade está no silêncio, o mundo e a vida estão em um silêncio mágico e incompreensível, que vaga por milênios no meio de nós, ínfimos frutos da comédia divina.
Quem diria que, à beira de completar meus vinte anos, absorto em meu próprio sofrimento, mergulhado na minha incapacidade de humano, eu descobriria que não sou, afinal, um fracassado. Se realmente há beleza no silêncio, e há poesia na beleza, meu gesto de permanecer calado tornou-me o mais hábil dos poetas. E tornar-me tal criatura, iluminou-me com uma compreensão infinita do mundo e da vida.
É por isso que transformo o silêncio, ardente, amoroso e livre, num cântico suave e poético que, cristalino, ecoa no coração de cada leitor dessas singelas palavras que escrevo. E, enfim, tornamo-nos eternamente unidos em um inquebrantável elo - sem receios, sem lamentos, sem fracassos.
Feliz novembro, para todos nós!

Essa crônica é para a Janayna que, como um anjo de luz, divide meu dia treze em raios de pureza vitral.