segunda-feira, 8 de março de 2010

Construir memórias



Dia desses, um dos meus professores do curso de mestrado levou uma lista para a aula, com uma série de livros que seriam lidos e debatidos no decorrer do semestre. Li rapidamente os títulos e, para minha enorme surpresa, me deparei com uma obra que considero uma das mais geniais da literatura contemporânea, uma obra que marcou minha vida literária: “O vendedor de passados”, de José Eduardo Agualusa. É claro que me inscrevi para o seminário, imediatamente.
Nos últimos dias, enquanto relia o livro para a apresentação, foi inevitável que eu mergulhasse no fantástico redemoinho do meu próprio passado, envolto por um turbilhão de lembranças que me conduziam a um destino totalmente inesperado. Lembrei-me da primeira vez em que tive contato com a obra, nas aulas da professora Teresinha Cani, há quase dois anos, e, consequentemente, me lembrei dos momentos únicos que eu vivera naquela época. Era inevitável, também, que viessem as lembranças do que eu nunca vivi, as lembranças que inventei ao longo dos anos, na minha criação literária. Sempre foi incontestável para mim o poder revolucionário da literatura, mas, naquele momento, senti, mais do que nunca, essa poderosa força me dominando. Afinal, a memória inventada pela literatura parecia, certas vezes, ainda mais digna de saudosismo do que aquelas que eu realmente vivera.
Memória. É justamente sobre isso que trata a obra de Agualusa. O que é verdade, o que é ficção e, principalmente, como realidade e ficção se mesclam, formando uma mistura tão homogênea que é impossível distinguir o que foi realmente vivido das lembranças daquilo que jamais existiu, exceto no mundo da ficção.
“Lembrar-se do que nunca existiu”. Essa metáfora de Clarice Lispector me conduz a uma reflexão profunda, a um mergulho dentro da própria existência. Como escritor, tantas vezes mergulho em lembranças que nada mais são do que pura ficção. Materializo a ficção. Transformo as memórias do que nunca vivi em histórias que o meu leitor irá viver. Mas, será que não as vivi? De alguma forma, em algum lugar, eu as vivi sim. Lembro-me de cada momento, a memória que tenho é tão real quanto aquela dos tempos de faculdade, das aulas da Teresinha. Essas lembranças são tão belas, tão saudáveis. Por que não deixar que invadam parte de nossa existência? A ficção é muito mais maleável do que a realidade, pode ser manipulada com mais facilidade, recriada e revivida com tantas cores, formas e sentimentos.
Esse é o convite que faço ao meu leitor. Criar memórias, reconstruir passados, fugir, por alguns instantes, do mundo real, mergulhar na ficção. Como fazer isso? Escrevendo! Essa é uma forma de reinventar a realidade e viver, por alguns instantes, em um mundo mais mágico. Tente! Não há riscos. Aliás, há apenas um: o de se criar um mundo tão perfeito, tão encantador, tão melhor do que a realidade, que a ficção se tornará uma droga. Não haverá mais saída a não ser dopar-se continuamente com doses cada vez maiores de sonhos, felicidades e fantasias – até o momento de uma total overdose de criatividade. Mas, afinal, acredito que o risco valha à pena.
Vamos criar memórias, vamos conhecer um mundo novo! A primeira ferramenta já está em suas mãos, nesse exato instante, com milhares de fragmentos de sonhos que navegam magicamente diante dos seus olhos. Esses fragmentos são as palavras. Estão aí para serem arrancadas, manipuladas, recriadas, sentidas, vividas, montadas para formarem um infinito quebra-cabeça, no qual nascerá o desenho de um mundo mais belo. Isso só depende da sua disposição para entrar no jogo, encaixar as peças, e curtir um pouquinho a brincadeira.
Venha, vamos brincar de construir memórias!
(O Colatinista, 11/03/2010.)