terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Novas travessias

“Será que durante a noite eu virei outra pessoa? Deixe-me pensar: Hoje de manhã, quando acordei, eu era a mesma pessoa? [...] Mas se eu não for eu mesma, a próxima pergunta é: Quem eu sou? Essa é que é a questão!”
(Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas)

É apenas o vago, o vazio. A imensidão de um nada que brota entre um toque de piano e um gole de vodca. Deixo que os pensamentos se calem, que a música me penetre suavemente pelos ouvidos até tocar-me a alma seca, na esperança de que o silêncio se converta em grito, ou riso, ou choro, ou qualquer coisa que não seja esse vazio que se apossa ridiculamente de minha existência, perturbando-a, enlouquecendo-a. No entanto, são apenas palavras, sons. Não há como entendê-los ou senti-los.

Há dois meses estou ausente da realidade que me cerca. Não escrevo. Não sei o que foi publicado no vazio da minha página nesse período. Há dois meses dedico-me a um fiozinho de esperança que de repente tocou-me a alma e me fez comer, beber, respirar unicamente por um motivo, uma única certeza: a da travessia.

Tudo começou no instante em que vi aquele pedaço de papel velho largado no chão e resolvi ler o seu conteúdo. Naquele exato momento, foi que senti o cheiro acre do tempo que apodrecia na secura quase-morta das lembranças e a chance de ruptura que apenas a partida me permitiria.
Mergulhei, com todas as minhas energias, em um lago turvo cuja profundidade me era desconhecida. Não haveria salvação caso eu afundasse, não haveria destino para mim se eu fracassasse, só o que me restaria era permanecer imóvel na água gélida, aguardando que o tempo me roubasse a esperança e o futuro. Permaneceria estático, eternamente preso no lago do comodismo.

Não fui derrotado. E agora a vitória me assusta, pois me obriga a lançar-me em um lago ainda maior e mais turvo, de águas ainda mais misteriosas. Ter vencido trouxe a responsabilidade de ser um vencedor, obrigado a conviver com conflitos ainda mais intensos e poderosos.

Tenho medo. Quando meu próximo texto for publicado, estarei a quilômetros de distância, lançando na mesa um dado que decidirá, entre mudança completa e desilusão intensa, o destino de uma vida que brota nas raízes a cada palavra que escrevo. Destino que está nas mãos dos deuses, mas também está em minhas mãos, pois eu sou o deus das minhas criações.

Essa não é uma crônica de despedida, pois continuarei escrevendo enquanto minha alma suportar a poderosa força das palavras. É uma crônica de ruptura. Uma fase de total transformação se inicia na minha vida e me conduz à travessia, à partida para um mundo desconhecido e inóspito. A solução é partir, desbravar, explorar. A única solução é cair ensandecidamente no lago, sem saber nadar, e lutar para sobreviver.

Quando eu chegar à outra margem, haverá algo maior a minha espera. Mas quando isso acontecer, eu já estarei pronto para as novas travessias, pois essa jornada que inicio agora me transformará em um novo ser, mais forte, mais vivo, mais capaz de lutar e vencer. Sim, estou com medo, mas a mesma força que me fez ignorar qualquer obstáculo e chegar até o ponto em que cheguei, me incendiará a alma para que eu possa prosseguir cada vez mais capaz de vencer.

É hora de eu me preparar. Já começo a sentir o ar fresco do outro mundo que me espera. Isso me assusta e me revigora. Vou esquecer o medo e mergulhar, vou acender meu cigarro e relaxar um pouco. Afinal, agora é tempo de esperanças ainda mais verdes. Agora, mais do que nunca, é tempo de rubros morangos tenros e suculentos.

O Colatinista, 04/01/2010.