quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Réquiem primaveril: Parte II - Os cânticos





— Eu...

Alto, forte, tímido, com seus olhos de desejos inalcançáveis, Lucas o fita. Sorri. E então ela vem, incipiente, impiedosa – a brisa. Varre a festa das lembranças primaveris de Joshua e faz emergir das trevas o primeiro cântico do réquiem. Toques suaves nas teclas envelhecidas do piano, antepassados girando intermitentes no rodamoinho dos deuses, suspiros de amores perdidos, resquícios de ódios antigos. A música se suaviza, como num agouro, surge o céu límpido de Monet em uma tarde de sábado e brotam-se as personagens, cálidas e sorridentes, a passearem na rua de outubro.

— O que és, Joshua Lins?

Fitou-o.

— Sou o pedaço de algo qualquer que ainda ousa amar-te inutilmente. Sou a noite fria das solidões tempestuosas que permanece sempre em sombras. Imaginas que me contento com migalhas? Pois estavas enganado se, por um momento que fosse, pensaste que não seria eu contrário a tal proposta.

— Mas deves entender-te...

Joshua abaixa os olhos, cerra os lábios. Uma lágrima fina lhe escorre pelo rosto pálido e a brisa começa a ferir-lhe as entranhas em um não-se-sabe-o-quê frio e vazio. Lucas se aproxima, toca-lhe a face, fita-o com seus olhos intensamente negros.

— É a única forma.

O outro desvia-se do toque, vira-se de costas – o som do piano torna-se mais ágil, tenso.

— Então não será.

E se afasta, decidido, irritado. Vem-lhe o desespero ao caminhar cada vez para longe e não ouvir a voz do outro a chamá-lo, ao caminhar para o abismo de uma escolha tola, de uma distância que lhe salvaria o orgulho, mas o separaria incondicionalmente do destino há muito traçado.

A cena se desintegra. Lentamente, as cordas do violino se unem ao som puro do piano e se inicia a suavidade triste, a música divina. Os estilhaços fazem Joshua retornar ao quarto escuro, aos livros espalhados, à atmosfera seca e perdida do final de novembro. Silêncio, total e absoluto. As luzes piscam, a cena escurece, o réquiem brota em meio às trevas e clama por Mo

Lucas sorri para Joshua através do vidro embaçado. Sim, sorri, é mesmo possível? Esvai-se com o sorriso o último suspiro, a alma desprende-se, a vida não é mais vida. Joshua prostra-se, cai, não se compreende, não se faz compreender, apenas desaparece em um vendaval imenso e desolador.

O violino desafinado corta a melodia em um ranger que arrepia de horror até a alma mais impiedosa. O piano é socado, martirizado, Mozart grita em dor e agonia, sangra-se como Cristo numa cruz de dezenas de cravos, após centenas e milhares de açoitadas no dorso nu. Grito. Loucura. Dançam os deuses loucos e sorridentes na roda desesperante de despudor festivo. É apenas loucura - rangidos, gritos, Mor

Lucas sorri. É mesmo possível? Joshua não sabe, ele nunca sabe, ele sempre faz as escolhas erradas, sempre opta pelo ranger e a dor.Silêncio. Vazio. Mort

Que voz é essa que invade minha crônica? Que crônica é essa que invade a voz louca do meu pesar? Que palavra é essa que se profetiza desde o princípio e nasce no fim?

Joshua tenta falar, mas as palavras não lhe tocam os lábios, o Joshua daquela tarde é incapaz de proferi-las. Lenta, a palavra surge num murmúrio sufocado, triste, que vaga juntamente com o silêncio agourento do quarto escuro, quando novembro já se foi e Lucas não passa de lembranças.

A palavra surge, materializa-se, grita calada.

Morte.

[continua na próxima encarnação]

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