domingo, 20 de setembro de 2009

Pequeno fragmento de uma melodia triste


“E até você voltar/meu bem eu vou cantar/essa nossa canção” (Luiz Ayrão)


Era uma vez uma terra distante, uma aldeiazinha perdida em campos de girassóis, onde vivia um rei nobre e belo, dotado de douradas mechas louras e intensos e vivos verdes olhos. O rei vivia pacatamente em sua vidinha de pétalas amarelas, até a manhã escarlate na qual viu o principezinho pela primeira vez. Era inevitável, outubro trouxera-lhe a hipérbole de um amor medonho e mortal.

Enviou-lhe rosas, mas estas se despetalaram antes que as carruagens cruzassem a imensidão das planícies. Serviu-lhe banquetes, mas as iguarias com as quais lhe presenteara eram tão nobres que os serviçais não conseguiam resistir à tentação de roubá-las. Ordenou que lhe recitassem versos, mas a beleza do principezinho era tamanha que os poetas se emudeciam para depois se suicidarem em doses de absinto e tragadas de ópio.

O rei viu-se, então, perdido na amargura de um amor que equivocadamente julgava não correspondido. O principezinho, por sua vez, acreditava ser uma criatura tão insignificante que sequer imaginaria que fosse mútuo o dilacerar de almas a tragar-lhes cada fragmento de felicidade em uma paixão estupidamente platônica.

E, nas noites densas, o principezinho fechava melancolicamente os braços vazios, sem saber que o rei angustiava a dor de não ter ninguém para abraçá-lo. O principezinho chorava solitário à luz das estrelas, sem saber que o rei fitava tristemente a imensidão negra do universo em busca de uma luz que lhe clareasse a alma. O principezinho permitia que uma lágrima fina lhe tocasse o rosto, quando acariciava o espaço vazio à esquerda de seu leito, sem saber que o rei se encolhia em seus lençóis de seda para não sentir o espaço vazio a sua direita. E quando o principezinho via o sol surgindo no horizonte, após a madrugada insone, desejando ver apenas aqueles olhos verdes se abrindo juntamente com a aurora, nem imaginava que era a solidão quem despertava o rei de seus sonhos ásperos e incolores. Assim, um sofria pela ausência do outro, sem saberem da reciprocidade de seus sentimentos.

Por semanas o rei clamou aos deuses, em vão, que trouxessem o principezinho para perto de si. Deixou de lado suas precisões mais básicas, suas tarefas mais árduas, suas responsabilidades mais urgentes, para dedicar cada momento de sua existência a um cântico triste de amor. Meses de ânsia, de desespero e de angústia se passaram e o rei se viu imensamente só em sua mediocridade monárquica.

Como se a solidão fosse o remédio às angústias de seu coração pisado, o rei pegou sua harpa dourada e se trancou no mais solitário quarto, da mais alta torre de seu castelo. E por sete dias a música que dilacerava as masmorras era tão triste e bela que fazia as virgens insones vagarem pela noite negra, clamando por possuidores viris – porque apenas os prazeres da carne seriam capazes de substituir o vazio que as sublimes notas musicais cavavam em suas almas. E os marujos, em desespero de amor, afundavam seus navios para encontrar as sereias, o zéfiro não soprava nas montanhas porque temia que sua força silenciasse o cântico do rei. Por sete dias, nem mesmo os pássaros ousaram cantarolar, tamanha era a suavidade da tênue névoa musical que sussurrava amores perdidos na calidez áurea daquela pequena aldeia.

E a solidão engolfou o rei com tamanha ferocidade, o amor contrariado dentro de si foi tão assassino, que sua suave canção de saudade se transformou num desesperante grito de ódio. Indignado pelo silêncio e desprezo do principezinho, lançou a harpa em fogo ardente e proibiu que qualquer música ou poesia fossem declamadas em seu reino, desde aquele nefasto momento, até a eternidade.

Em cólera, o rei convocou a mais poderosa das feiticeiras e, num pacto com vis demônios das profundezas de Hades, conjurou um mortífero veneno metamorfoseado em morango macio, vermelho e doce. Ordenou que lhe trouxessem o principezinho e presenteou-o com seu fruto fatal, aguardando estaticamente a primeira mordida.

No entanto, a felicidade do principezinho ao ver o singelo presente foi tamanha, o brilho nos olhos tão encantador, a face tão meiga e púrpura, que o rei não conseguiu calar em si o grito estridente que lhe destruía a alma. Desesperado, sentiu o arrependimento explodir-lhe as entranhas enquanto via os lábios de seu amado ainda mais rubros com o escarlate veneno dos morangos. Imediatamente, pôs-se a salvá-lo.

E então, eufórico, o rei beijou o principezinho tão intensamente que lhe arrancou o veneno do interior das artérias pulsantes. E conheceu uma força tão poderosa apossando-se de sua existência que só era capaz de sentir o doce palato de morangos tenros enquanto era engolfado pelo negro abismo da morte.
Fim.

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